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Clarice Lispector e os diagramas de alteridade na arte do Rio de Janeiro

                     

Paulo Herkenhoff

A arte contemporânea é um campo experimental sui generis da solidariedade. Nesse contexto histórico, surgem os diagramas de alteridade que são modelos de arte tomada como um sistema de trocas entre o artista e indivíduos em estado de vulnerabilidade social. Tratam-se de formas de ação incidentes no plano da economia simbólica com alguma consequência real positiva sobre a vida das pessoas. Cabe analisar o termo diagrama, que é uma representação esquemática de uma estrutura ou operação na ciência ou na arte. Em geometria é uma figura composta por linhas para ilustrar uma definição, afirmação ou apoio a uma proposição. A etimologia do latim diagramma provém do grego diagraphein (dia, através + graphein para escrever). Por exemplo, os diagramas de Venn simbolizam graficamente propriedades, axiomas e problemas relativos aos conjuntos e suas teorias.

 

Nesta teoria dos diagramas de alteridade há uma proposição simbólica entre duas posições políticas definidas pela arte. O indivíduo que se tornara invisível é agora descoberto e resgatado pela arte, trazido à tona da vida social pelo artista sob novo paradigma ético; portanto, cabia outra estratégia de abordagem solidária. Por isso, o emprego do vocábulo diagrama para compreender esta simetria social pro justitia. No início dos anos 90, os interesses em operações de alteridade social se aprofundam e ampliam seu espectro. A arte assume tarefas de investigação ontológica do ser social, irredutível à condição de serviço social ou de ciências humanas. Seria igualmente inadequado tratá-la como engenharia social ou tecnologia social, planos da empiria.

 

Na dimensão da individualidade, estão o necessário reconhecimento e a minuciosa construção da subjetividade. Seriam alternativamente, portanto, diagramas de subjetivação. Num polo, o sujeito da expressão, o sujeito da linguagem e o sujeito econômico da arte terminam por se sintetizar, de modo resoluto, nesse Outro dignamente reconhecido na praxis. Veremos que um problema crucial dos diagramas de alteridade é a questão da não apropriação da mais-valia simbólica.

 

Os diagramas de alteridade se constroem como processo num campo de relações de diferenças e de suas incertezas. A ação pode se dar por meios tecnológicos precários ou em situações sociais de crise comunicacional. O território é a própria ideia de marginalidade social naquilo que ela tem de desterritorialização dos indivíduos. Esses artistas tornam visível o que está na zona da obliteração social, moeda do olhar na exclusão social e política. Ancorada em situações concretas no Rio de Janeiro essa produção, no entanto, aponta para a história e aproxima alguns artistas. É frequente entre os artistas jovens a preocupação com os adolescentes em situação de risco, como a falta de escuta em suas demandas, frustrações, fantasias e impossibilidade de planejar um futuro emancipado, situações de risco de toda espécie (gravidez precoce, tráfico, brutalidade policial, genocídio dos jovens negros) ou, simplesmente, para além da fome. É um movimento da libido entre traumas e fraturas do sujeito.

 

Existe uma história oblíqua da arte carioca que remonta aos anos 60 e se espalha pelo Brasil. Sua matriz está na literatura da interioridade do ser de Clarice Lispector, que lida com questões da arte e do olhar e de sua responsabilidade social pessoal. Sua crônica Mineirinho (1962) sobre a morte deste bandido com 13 tiros desfechados pela polícia, é a pungente reflexão sobre a marginalidade urbana e a responsabilidade da cidadania: “O décimo-terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro,” escreve ela. A escritora tomou os 13 tiros como 13 etapas de vida do Mineirinho que vão do choro famélico do então recém-nascido, passando pela criança desvalida, pelo adolescente sem rumo até o adulto sem qualquer apoio da sociedade para superar sua condição de excluído absoluto e sem horizonte, sob uma rígida imobilidade social que não admite emancipação nem esperança de dias melhores. A escritora assume a responsabilidae como aquela que não escutou. O intervalo entre os tiros se acelera, a escrita tensa solicita uma urgência que acaba desconsiderada. Hélio Oiticica deve ter lido a crônica de Lispector à época da morte de Mineirinho, já que o cita com frequência. Seu BÓLIDE CAIXA 18, Poema Caixa 2, Homenagem a Cara-de-cavalo (1966) se refere a outro bandido morto. Mineirinho e Cara-de-cavalo haviam caído na categoria hostis da polícia, inimigo público. Oiticica tem muito do ethos precedente de Lispector. Para ele, Cara de Cavalo “tornou-se um símbolo de opressão social sobre aquele que é ‘marginal’ (…) sei que certo modo foi ele próprio o construtor do seu fim”. Seu texto O Herói Anti-Herói e o Anti-Herói Anônimo (1968) esclarece o programa político que sustentou a produção daquele Bólide: “O que quero mostrar, que originou a razão de ser de uma homenagem, é a maneira pela qual essa sociedade castrou toda a possibilidade de sua sobrevivência”. O Cara de Cavalo é o símbolo daquele que deve morrer, diz Oiticica. Lispector escreve ainda em Mineirinho. “Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva”.

 

É no viés da morte previsível e perda da inocência que alguns artistas trabalham com meninos de rua, lugar em geral visto como “escola do crime”. Já Clarice, havia escrito: “Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente”. Lispector e Oiticica parecem colados em dimensionar o homo sacer urbano. Os dois estão unidos por vínculos éticos. “A sociedade que marginaliza e mata" é exposta por ele. A partir do eixo Lispector-Oiticica pode-se pensar na experiência brasileira de arte como campo de relações de alteridade social. Essa praxis é ancorada no modo como a cultura do Rio de Janeiro, malgrado pressões acadêmico-greenbergianas oponentes, resiste a separar a arte da vida, sem perder a mão sobre a estética da obra. Depois de Oiticica, os desdobramentos ocorrem em fins da década de 60, com as ações de agenciamento da história por Cildo Meireles (com noções de gueto como campo de energia simbólica) ou por Lygia Pape (Divisor, 1968, uma rede integrada de alteridades numa ação coletiva em comum) e Artur Barrio. Em Situação T/T (1970), Barrio distribuiu volumes ensanguentados em lugares a ermo - as Trouxas – que despertavam interesses e discussões da população mais simples, curiosa em entender os estranhos embrulhos, de aparência mórbida, possivelmente relacionados a execuções pela polícia ou pelo crime. Barrio agenciava mecanismos sociais de tomada de consciência sobre o grau de violência tolerado na sociedade. As Trouxas funcionavam como motor de acionamento e de mobilização do Outro em graus diferentes de questionamento. Os três, com Oiticica, produziam visibilidade e envolvimento daquele que fora socialmente obliterado.

 

Cogita-se aqui uma trajetória lispectoriana também de uma geração de artistas que não conviveu com sua presença na imprensa carioca cotidiana. O sentido do legado generoso de Mário Pedrosa da relação entre arte e sociedade também não se esgotou, mas se renova com artistas como os ora debatidos. Em O Estado de exceção, Giogio Agamben discute como a “vida nua” é aquela em que “qualquer um pode tirar sem cometer homicídio ou aquela que qualquer um pode levar à morte, em que pese seja insacrificável”. É o estado de desproteção absoluta que remonta ao homo sacer banido da proteção do direito romano, que Agamben compara à prisão americana de Guantánamo e ao campo de concentração nazista. Agregue-se que a vida nua no Brasil está nas favelas, nas ruas, nos quilombos, nas aldeias indígenas, nas prisões, no feminicídio, alvos do trabalho de alguns artistas.

 

Sucessivas gerações de artistas assumiram a tarefa da resistência à opressão ao longo dos séculos: Jacques Callot, Goya, Édouard Manet, Käthe Kollwitz, John Heartfield, Pablo Picasso e mesmo Andy Warhol, Georg Immendorf ou Gerhard Richter e muitos outros. Entre os contemporâneos, pode-se pensar a exclusão e a opressão na agenda dos afro-descendentes das Américas como Lorna Simpson, Kara Walker, K-cho, Glenn Ligon, Nadine Robinson, Rosana Paulino, Arjan, Ayrson Heráclito, Jaime Lauriano, Maxwell Alexandre e a opressão dos palestinos com Emily Jacir e Adel Abdessemed, entre outros na cena internacional e brasileira. Eles imbricam questões de classe, etnia e gênero sob formas de opressão, como a mais-valia no capitalismo avançado, o abuso sexual, a escravidão, as guerras, os massacres, as diásporas, o imperialismo, a desterritorialização e o genocídio. 

 

Na década de 1980, Celeida Tostes subiu o morro do Chapéu Mangueira no Leme para organizar atividades com os moradores da comunidade para a recuperação da cultura material do lugar. Como ceramista, organizou mutirões para produzir tijolos em adobe para a construção de casas. Em seguida, observando a existência de uma memória de receitas de doces caseiros trazidas pelas mulheres migrantes, organiza uma cooperativa, desenha as embalagens para criar uma marca e um estilo que lhes garantisse uma identidade e criar condições de produção de renda. Nisso envolveu costureiras e doceiras. Celeida Tostes foi uma precursora do processo de diagrama de alteridade. O viés ético do projeto, no período que se sucedia ao esgotamento da ditadura de 1964, almejava a utopia simples de articular energia física individual e memória sócio-familiar em processo coletivo em torno de ações de interesse comum. O objetivo era, em última análise, elevar a auto-estima daquelas mulheres.

 

O que muda na geração surgida no Rio nos anos 90? É a busca de um Outro social concreto e desamparado. Está para além do vago desejo oportunista de alteridade antropológica do modernismo antropofágico da diversidade brasileira. Se a formação do país era vista como processo de absorção cultural pela metabolização de todas contribuições, cabe indagar quem é o Outro da Antropofagia. Era sempre um tipo exótico extraído da formação social, nunca um sujeito concreto. Na história da arte do Brasil, o Outro só se concretizou no morro que Oiticica sobe para trazer como Mangueira em Tropicália no Museu de Arte Moderna do Rio em 1967. Nessa geração se encontram Dias & Riedweg, Trope, Palazyan, Frota e Vidor que propiciam diagramas de subjetivação do Outro.

A arte de diagramas de alteridade ou de sociabilidade põe lado a lado artistas como a pioneira Celeida Tostes, Maurício Dias & Walter Riedweg, Paula Trope, Rosana Palazyan, Eduardo Frota (atuante em Fortaleza depois de sua longa experiência no Rio), Igor Vidor no Rio de Janeiro e Claudia Andujar em São Paulo, Bené Fonteles em Brasília e Alexandre Sequeira no Pará, entre outros, bem como as agudas operações da política da imagem de Rosangela Rennó. Esses artistas estabeleceram um regime de trocas através da arte e de seu sistema de inscrição social que permite o confronto de aspectos colidentes de utopia, entropia e desigualdades. Não se trata aqui de aderir ao “politicamente correto”, mas de apontar a resistência à desigualdade num país antidemocrático. Ao ouvir a população de rua, as obras atuam como diagramas de subjetivação do Outro em torno do valor de uso e do valor de troca do objeto de arte envolvido, como se verá. Esses artistas adotam um novo paradigma de ações de alteridade social em que a arte, se não muda o mundo, no entanto, poderá alterar nossa maneira de pensá-lo.

A dupla Dias & Riedweg desenvolveu o projeto Devotionalia (1995), uma instalação com as mãos e marcas dos pés em cera de dezenas de meninos da Lapa. O projeto foi apresentado no MAM carioca e depois exposto no edifício do Congresso Nacional em Brasília com o objetivo de chamar a atenção para a infância abandonada e sem perspectivas no Brasil neoliberal. Dias conta que “dez anos depois, continuando a casualmente encontrar algumas das crianças [agora já jovens adultos] na Lapa, no Flamengo, em Copacabana e no centro da cidade (...) nos demos conta de que grande parte tinha morrido mesmo. Os próprios ‘meninos’ que sobreviveram nos contavam também em que situação os amigos morreram (tráfico, polícia, violência)”. Dias & Riedweg voltaram à cena para fazer um vídeo como protocolo atual dos sobreviventes. Calcula-se por relatos diversos (adolescentes reencontrados, assistentes sociais e imprensa) que metade dos meninos já teria morrido. Para muitos, a rua foi o passaporte para a morte. Evidência antecipada do genocídio dos jovens negros e pobres. Pode-se presumir, em parte, que muitos dos que hoje faltam da obra de Dias & Riedweg se tornaram seres em forma de “lama viva”, uma acepção de Clarice Lispector. “Enquanto isso, dormimos e falsamente nos salvamos”, diria a escritora.

Em 1993, bem antes da difusão da fotografia digital por telefones celulares, Paula Trope fotografou meninos de rua com câmeras sem lente (ditas pin-hole). Retratou aqueles que não tinham um retrato de si, espécie de Narciso irrealizado por falta de um rosto fotográfico na sociedade do excesso de imagens e dos excessos da imagem. Era uma existência sem fotografia ou documento, sem o qual não tinham vida formal. Em seguida, Trope oferece uma câmara pin-hole a cada criança fotografada para que ela própria registrasse qualquer objeto ou situação de sua escolha. Atiça nelas o desejo imagético de observar o mundo através da fotografia. A operação política de Trope ofereceu aos meninos de rua – que antes eram sempre o objeto da imagem – a possibilidade de se tornarem sujeito da fotografia, i.e., em sujeito da linguagem. Captam na fotografia seu objeto do desejo. Não se trata de simples oposição da cultura à natureza, mas do balbucio pré-lingüístico de auto-reconhecimento fotográfico do sujeito. Arqueologicamente, os retratos investigativos de Trope remetem à imobilidade social no Brasil desde a fotografia de escravos por Christiano Jr no século XIX. 

Os dípticos de Trope se formam com o retrato do menino feito por ela e a fotografia tirada pelo retratado, cuja colaboração é reconhecida pela artista à sua obra. Muller escolheu registrar uma cédula que correspondia ao valor de seu trabalho como guarda de automóvel. A artista e os garotos são igualados pela precariedade da técnica fotográfica sem lente. Os meninos ganham seu nome Fabrício, João, Xambim, Muller e Fefei como autores. As imagens surgem quase em tamanho natural nos retratos dos meninos que, fotografados na rua com câmaras sem lente, estão sempre solitários como em abandono social. É porque a pin-hole demanda mais tempo de exposição do que as rápidas câmeras industriais. Como resultado, os transeuntes, que passam entre os meninos e a câmera, não são capturado na imagem. Disso surge a metáfora de sua solidão social. Esses meninos surgem como quase fantasmas, atores da fantasmática social do medo da violência, porque, como escreve Lispector, “somos os sonsos essenciais” e procuramos “não entender”.

 

Numa segunda etapa, Paula Trope desenvolveu o projeto Os meninos do morrinho, sobre a invenção de adolescentes do morro do Pereirão em Laranjeiras no Rio. Cada menino do morrinho reinventa em maquetes as favelas cariocas e reencenam, numa brincadeira complexa, o cotidiano, a luta pela moradia e a guerra de tráfico entre os morros. Com as maquetes e jogos de guerras e invasões, os meninos trabalham a sublimação e a resistência subjetiva no contexto da aniquilação social e o risco de envolvimento com o tráfico. São colaboradores de Trope em Os meninos do morrinho e criadores de maquete: Nelcirlan Souza de Oliveira (Beiço), Maycon Souza de Oliveira (Maiquinho), José Carlos da Silva Pereira (Júnior), Luciano de Almeida, Rodrigo de Maceda Perpétuo, Paulo Vitor da Silva Dias (Tovi), Raniere Dias (Rani), Renato Dias Figueiredo (Naldão), Felipe de Souza Dias (Lepé), Marcos Vinicius Clemente Ferreira (Negão), David Lucio Terra de Araújo (Forma), Esteives Lúcio Terra de Araújo (Teibe), Gustavo José dos Santos (Djou), Leandro de Paiva Adriano (Lê), Leonardo de Paiva Adriano (Nem), Irla Silva dos Santos (Plin-Plin) e Bruno Silva dos Santos. Os meninos do morrinho já conheciam tecnologias da imagem. Tinham atravessadp a ponte da exclusão digital do video e outras traquitanas eletrônicas. Já produziram video criativo de apresentação de seu próprio trabalho.

 

Paula Trope problematiza a auto-expressão em comunidades na Cidade partida (1994), título da obra de Zuenir Ventura sobre a divisão social no Rio de Janeiro. Os meninos dos Morrinhos resistem ao apartheid social representado pelas favelas brasileiras. Contra a possibilidade de aderir ao narcotráfico da vida adolescente que se atingia, o projeto Os meninos do morrinho de Trope se propôs como negociação social com os garotos – objeto e sujeito – simultaneamente fotografados e fotógrafos com pin-holes de seus respectivos morrinhos, sua obra pessoal. Trope estrutura a obra em duas imagens: o retrato do menino diante de seu morrinho registrado por ela e outra foto de detalhe do morrinho tirada pelo próprio jovem que é seu “dono”, que agora se tornam duplamente sujeitos: autores da maquete e colaboradores da artista. Eles e Trope atuam contra a ordem despótica da organização da cultura. Os conjuntos de imagens justapõem as fotos da criatura-criador. Parecem leitores da Clarice de “O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno”. 

 

Rosana Palazyan. Escola João Luís Alves. 2000/2002. Impressão sobre papel.Col. MAR, doação da artista. 

No projeto Roupa de marca (2000/2002) Rosana Palazyan envolve menores em conflito com a lei na produção de “roupas de marca” (camisetas com logomarcas da Adidas ou da Nike desenhadas por eles), sempre objeto do desejo de consumo deles. As peças foram vendidas na Babilonia Feira Hype no Rio. Os recursos das vendas reverteram para a instituição onde eles estavam internados e foram destinados ao uso coletivo, em favor do grupo, já que a legislação proíbe remunerá-los diretamente. As escolhas recaíram sobre uma televisão nova ou um jogo de camisas para o time de futebol. Por ocasião da venda de alguma obra, na impossibilidade de reencontrar seus parceiros ou de proibição de remunerar individualmente (no caso das instituições para os menores), Palazyan endereça a importância apurada a algum órgão capaz de beneficiar o segmento social em foco. O procedimento, que já caracteriza aqueles projetos brasileiros de arte de diagramas sociais, recusa a apropriação da mais-valia financeira porque o agenciamento dos valores simbólicos do Outro implica considerá-lo necessariamente sujeito econômico do fato plástico. Cabe, pois, evitar que o processo não se converta em apropriação da mais-valia simbólica pela arte. Diante da desafiante questão simbólica, a estratégia é pensar em tarefas de emancipação pessoal do Outro, de justa remuneração e de construção de alianças políticas.

Nos anos 2000, o atelier de Eduardo Frota em Fortaleza, em seu retorno depois de muitos anos no Rio, virou uma fábrica irracionalista, pois gastava mais força de trabalho do que o necessário. Seu diagrama de alteridade era a transferência de renda, já que não havia mercado para o grosso que ali se produzia. Todos seus projetos apresentados ao financiamento por instituições implicavam em gastos extraordinários com o trabalho de marcenaria, muito no oposto do que se pensaria num regime de economia de mão de obra. No estúdio, a enorme faina dos até 14 operários tinha o objetivo de montar estruturas para dar corpo aos objetos de um modo oblíquo. A construção de grandes cones e carretéis se fazia pela acumulação de planos de madeira que eram colados formando o volume e a forma. Seria mais econômico, na fabricação de um carretel, usar um cilindro a partir de uma tora trabalhada longitudinalmente ou curvar uma folha de compensado, em lugar de construir um tubo pela sobreposição dos planos circulares. Frota queria justamente isso: propor projetos que demandassem mais recursos das instituições (CCBB, Museu da Vale) como forma de redistribuir e ampliar a renda de seus colaboradores. A madeira no osso expunha a laminação e demonstrava o intenso investimento no trabalho. O escultor se propunha a afirmar uma diferença - “o que tudo isso implica: gesto, materialidade, construção de tempo, adensamento de experiência coletiva, fluxos de tempos/ espaços / sentidos (ampliado, contido, expandido, deslocado)”. O título Intervenção Extensiva se vincula à marcenaria mais complexa que implicava, portanto, em pagar um maior volume de salários a seus colaboradores. Essa estratégia favorável era discutida com os operários que assim tomava consciência desalienante do sentido do trabalho irracional, além de discussões de história da arte e de filosofia. A relação social e política estabelecida por Frota com seus operários-assistentes remetem aos experimentos sociais de Geraldo de Barros em sua fábrica UNILABOR e sua gestão coletiva e distribuição de lucho. O trabalho de Frota se constitui por uma necessidade, diz ele: a artesania cria corpos pela repetição e obsessão. Seu processo é aquilo que poderia se definir como “produção de produção”. Ele desmonta a opacidade projetada pelo capitalismo sobre o valor do trabalho agregado ao produto. Seu objetivo era tornar visível aquilo que é estrategicamente obliterado no processo de constituição do valor de troca na arte mediante a incorporação do fator trabalho e do esforço produtivo extra, sob a visibilidade do laboral.

Uma Intervenção Extensiva é uma operação com a teoria do valor, pois Frota, como Trope e Palazyan, trabalha a própria condição social da produção de valor na obra de arte. Ao confrontar os conceitos da economia política de valor de uso e valor de troca, ele expõe a operação de constituição imaginária do objeto de arte como um signo de valor. Como Cildo Meireles em Árvore do dinheiro (1969), Eduardo Frota é dos que apontam para a “defasagem entre valor de troca e valor de uso, ou entre valor simbólico e valor real”. “Percebi que o corte na madeira é um tipo de pensamento.” Relata Frota, “a audácia do corte desmonta e monta a forma/objeto.” Ele deixa visíveis suas operações materiais, atuando com um anti-simulacro do corpo escultórico monolítico. Nesse sentido, sua obra escancara a verdade material, uma atitude ética que no Brasil se simboliza no aço na obra de Amílcar de Castro. E, insista-se, deixa visível o trabalho como valor agregado. “Gosto de João Cabral,” discorre, “quando fala das tripas. Ao mesmo tempo, o trabalho tem essa exterioridade para o mundo, também tem uma interioridade própria do processo do trabalho.”

Mais recentemente, o paulista Igor Vidor, residente no Rio até 2018, tratoy seu projeto de diagrama de alteridade como mínimas “esculturas sociais” (conceito que Joseph Beuys desenvolveu para suas preocupações político-ambientais), pois nele “há uma pregnância da economia marginal, do trabalho infantil, da pulsão de vida, da destreza individual versus a imobilidade social inserida no pós-colonial sob a forma de pós-escravismo.” Vidor lidou com garotos malabaristas que manipulam bolas de tênis amarelas nos sinais de trânsito do Rio de Janeiro. O artista lhes propôs trocarem as bolas usadas, pintadas pelo cinza do asfalto, por novas. Para ele, “as bolas em movimentos são ‘sólidos piramidais’, pois são um sintoma da estrutura social rígida imóvel.” A série Tênis Clube (2015) consiste em conjuntos de bolas organizados cromaticamente em caixa sob arranjos formais cromáticos diversos como linhas alongadas. São pinturas. Sua venda beneficiará os garotos malabaristas.

 

Igor Vidor. Tênis Clube 3. 2016, bolas de tênis em caixa de madeira. 11 x 218 X 10 cm. Coleção MAR. Fundo Maria Willemses de Azevedo Sodré.

“De qualquer forma, mesmo identificando essa estrutura perversa que mantém garotos no sinal, para eles aquilo sempre foi trabalho, com dia, hora e compromisso,” comenta Vidor, “quando eles se posicionam diante dos carros ali, naqueles 30 segundos, existe a formação de um público que inevitavelmente não quer ser público. Nesses quase quatro anos trabalhando com os garotos presenciei, por parte de público, todo tipo de repulsa que pode imaginar. Uma vez fizemos um exercício de poder sob sua prática, e pedi aos garotos que sem mantivessem no sinal alguns segundos a mais após a abertura do sinal verde; como consequência houve businaço, xingamentos e avanços de automóveis sobre os meninos.”

Paula Trope, Rosana Palazyan, Eduardo Frota e Igor Vidor desmontam a mais-valia para convertê-la em signo crítico. A inquietação inicial de Trope incluía um novo paradigma de alteridade social. Ela aprofundou a experiência de alteridade ao propor aos meninos do Morrinho a negociação de questões autorais, jurídicas e econômicas, através de um contrato assinado com o próprio garoto se maior de idade, ou com seus responsáveis, se for menor. Ela assegura o retorno financeiro direto para os participantes de seus projetos, sejam a população de rua ou moradores em favela. Seu foco em transformá-los em autores singularizados da imagem e em sujeitos econômicos como um exercício experimental da igualdade, Mario Pedrosa aqui parafraseado. O sentido foi estender seu rizoma de equilíbrio social em confronto com as séries anteriores. Integra a obra atual de Trope reconhecer os meninos como sujeitos com linguagem própria, produtores de cultura e seus colaboradores autorais. Não haveria diagrama de alteridade positivo sem elisão da mais-valia simbólica es a mais-valia sobre seu trabalho.

Se, como já se mencionou, o valor da produção de Os meninos do morrinho foi dividida em três terços (um para os meninos, outro para Trope e, conforme a lei do mercado, o terceiro à galeria). Também Igor após a troca, propôs o mesmo acordo que determina que no ato da venda do objeto Tênis Clube, o valor seja igualmente dividido em três partes. Um terço para a galeria, outro para o artista e outro para o garoto. A galeria que aceitou esse esquema, em ambos os casos, foi Luciana Caravello no Rio.

“Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila,” conclui Lispector. A quem serve a arte dos diagramas de alteridade? De nada valeria se fosse à “boa alma” hegeliana dos artistas sem trocas beneficiárias concretas com o Outro. Pois foi assim que Lispector deplorou a “mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato”. Oiticica desprezou a “pena” expressada em cruel “gozo social”. Os artistas dos diagramas de alteridade se exigem o questionamento ético da prática, frustrações e contradições. Por fim, talvez eles pudessem, para resumir seu trabalho, tomar emprestadas as palavras de Clarice Lispector: “e continuo a morar na casa fraca”. O escopo desta análise se concentra no Rio, lugar de origem e de experimentação dos diagramas de alteridade. Em A dúvida de Cézanne, Merleau-Ponty conclui que a obra de Cèzanne exigia “esta vida”, ou seja, aquela sua vida. Cabe aqui estender em paráfrase: estas obras solidárias exigiam esta cidade, socialmente injusta, o Rio de Janeiro.

Texto no livro Rio XXI- Vertentes Contemporâneas, org. Paulo Herkenhoff, editora FGV, Rio de Janeiro, 2019

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